Olha a água!

Choveu muito no mês de março, como sempre. Mas na madrugada do dia 17 para o dia 18 o mundo caiu. Da Tabatinga, das Galhetas, não se via no mar à frente a vila na enseada, só se ouvia o barulho ensurdecedor e a escuridão, o céu ameaçador engolindo até o negrume da lua nova que ia embora às vésperas do São José. Dito do Espírito Santo, caiçara dos antigos, morador daquela praia, tinha feito boa pescaria de arrastão, um dia antes, apesar da chuva, e sonhava com o dinheiro que faria dos carapaus, peixe da época, paixão dos nativos e dos parcos turistas do vale, que se aventuravam naquele molhado mês de março. Dormia sono solto quando acordou com o estrondo. Assustado, sem saber de onde vinha, ficou alguns minutos inerte na rede grande, olhos abertos, Maroca do lado, água caindo sem dó, era hora mesmo de acordar, mas como ir à vila com aquele aguaceiro? E que barulho foi aquele?
Levantou antes da mulher, inquieto, ensimesmado, e foi para o fogão cujas brasas ainda ardiam viradas em carvão miúdo, resistindo bravamente às goteiras que lhes castigavam e frigiam.
Aumentou o fogo, acrescentando as lascas de  guaiuvira escondidas debaixo da mesinha no canto escuro do cômodo, que servia de sala, quarto e cozinha ao mesmo tempo, separados só pela cortina de chita colorida e barata, cuidadosamente costuradas pela sua mameluca companheira.
Lá fora o mundão acabava em água, o riacho que descia da Serra da Caçandoca desabava feito um Amazonas no mar oceano revolto. O medonho estrondo da madrugada não lhe saia da cabeça, até que resolveu ir à vila de qualquer modo. Arriou a velha égua baia à carroça, já carcomida pelo tempo, carregou os xumbregas já limpos e salgados e saiu sob os protestos da Maroquinha. Passava das sete da manhã.
Escondido sob a proteção do chapéu de palha atolado na cabeça e uma capa escura que ganhou de um marinheiro holandês que viveu uma vez no sertão do Ingá, para os lados de Ubatuba, levou pouco mais de uma hora naquela torrente, até que a tragédia se abriu aos seus olhos, quando atingiu a reta da estrada que atravessa o Massaguaçú. A Vituba à sua frente, a Fazenda dos Ingleses e Rio do Ouro à direita tinham virado um emaranhado de troncos, lama e pedras que desceram dos lados do Santo Antônio, entupindo tudo, casas, estrada, os pastos da Fazenda, os currais. O morro que escondia a  Guaxutunga parecia que nunca tinha existido, virou uma coisa só. E tudo alagado, um rio vermelho e sujo.
Atrelou na Cocanha a velha baia, na tapera de um amigo antigo, prosearam, lamentaram a tragédia e partiu a pé para a vila, na cara e na coragem, a fim de descobrir e entender direito o sucedido. Mesmo mateiro experiente, conhecedor daquelas plagas, levou quase quatro horas para cumprir os pouco quilômetros que o separavam do centro, lama às vezes até o pescoço, a chuva castigando mais ainda, não querendo trégua de maneira. À sua esquerda era de dar pena o espraiado da Guaxutunga e suas casinhas outrora bonitas e aprazíveis, parada de tantos turistas no verão passado e em outros, desde o longínquo 1947, quando descobriram o balneário e a linda praia metade de tombo e outra de águas calmas. À direita a Fazenda dos Ingleses, irreconhecível. O morro de Santo Antônio pelado, com suas frondosas árvores escorregando pela encosta pedregosa. Tudo agora eram imensas toras arrancadas do seu lugar nativo, lama podre, e um cheiro de morte, que descobriu maior que imaginava quando chegou à Marrequinha.
Não era hora de lamentar, era de solidarizar. No meio dos escombros juntou-se ao povo que sobreviveu, que mal podia velar seus mortos, arregaçou as mangas, e os braços rijos de caiçara acostumado a puxar as redes pesadas de arrasto, fez o que pode, naquele lugar e hora onde quase nada se podia fazer.
A visão da vila era desoladora, e só meia cidade naquele momento poderia receber algum socorro, o outro lado do rio, separado por duzentos metros de água e lixo, sem a ponte que rodou de manhãzinha, parecia outro mundo desolado, destruído pelo poder insuperável da natureza impiedosa. A Utinga, o Jaraguá, Indaiá, Porto Novo, tudo debaixo d'água.
Ficou ali o tempo que foi preciso, indo e voltando às Galhetas para rever sua Maroca, acostumou com o cheiro da morte, diziam 500, mas talvez 2000 vidas se perderam nos sertões ao pé da serra e na beira do mar. Viu chegar ajuda, ela ser roubada por comerciantes e políticos inescrupulosos e frios. Mas também viu gente solidária fazendo jus à natureza do povo nativo.
O tempo passou, talvez o Dito ainda esteja vivo. Oxalá esteja para poder ter visto o milagre que o povo de Caraguatatuba conseguiu realizar em 50 anos, reerguendo a cidade que já havia morrido outras vezes, pela bexiga, pelo tifo e pela natureza.

Mas, se ainda viver jamais deixará de ouvir em seu coração o grito das pessoas naquele fatídico dia: "Olha a água! Caraguatatuba está morrendo."

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