Levantou antes da mulher, inquieto, ensimesmado, e foi para o fogão cujas
brasas ainda ardiam viradas em carvão miúdo, resistindo bravamente às goteiras
que lhes castigavam e frigiam.
Aumentou o fogo, acrescentando as lascas de guaiuvira escondidas debaixo da mesinha no
canto escuro do cômodo, que servia de sala, quarto e cozinha ao mesmo tempo,
separados só pela cortina de chita colorida e barata, cuidadosamente costuradas
pela sua mameluca companheira.
Lá fora o mundão acabava em água, o riacho que descia da Serra da
Caçandoca desabava feito um Amazonas no mar oceano revolto. O medonho estrondo
da madrugada não lhe saia da cabeça, até que resolveu ir à vila de qualquer
modo. Arriou a velha égua baia à carroça, já carcomida pelo tempo, carregou os
xumbregas já limpos e salgados e saiu sob os protestos da Maroquinha.
Passava das sete da manhã.
Escondido sob a proteção do chapéu de palha atolado na cabeça e uma capa
escura que ganhou de um marinheiro holandês que viveu uma vez no sertão do
Ingá, para os lados de Ubatuba, levou pouco mais de uma hora naquela torrente,
até que a tragédia se abriu aos seus olhos, quando atingiu a reta da estrada que
atravessa o Massaguaçú. A Vituba à sua frente, a Fazenda dos Ingleses e Rio do
Ouro à direita tinham virado um emaranhado de troncos, lama e pedras que desceram
dos lados do Santo Antônio, entupindo tudo, casas, estrada, os pastos da
Fazenda, os currais. O morro que escondia a
Guaxutunga parecia que nunca tinha existido, virou uma coisa só. E tudo
alagado, um rio vermelho e sujo.
Atrelou na Cocanha a velha baia, na tapera de um amigo antigo,
prosearam, lamentaram a tragédia e partiu a pé para a vila, na cara e na
coragem, a fim de descobrir e entender direito o sucedido. Mesmo mateiro
experiente, conhecedor daquelas plagas, levou quase quatro horas para cumprir
os pouco quilômetros que o separavam do centro, lama às vezes até o pescoço, a
chuva castigando mais ainda, não querendo trégua de maneira. À sua esquerda era
de dar pena o espraiado da Guaxutunga e suas casinhas outrora bonitas e
aprazíveis, parada de tantos turistas no verão passado e em outros, desde o
longínquo 1947, quando descobriram o balneário e a linda praia metade de tombo e
outra de águas calmas. À direita a Fazenda dos Ingleses, irreconhecível. O
morro de Santo Antônio pelado, com suas frondosas árvores escorregando pela
encosta pedregosa. Tudo agora eram imensas toras arrancadas do seu lugar
nativo, lama podre, e um cheiro de morte, que descobriu maior que imaginava
quando chegou à Marrequinha.
Não era hora de lamentar, era de solidarizar. No meio dos escombros
juntou-se ao povo que sobreviveu, que mal podia velar seus mortos, arregaçou as
mangas, e os braços rijos de caiçara acostumado a puxar as redes pesadas de
arrasto, fez o que pode, naquele lugar e hora onde quase nada se podia fazer.
A visão da vila era desoladora, e só meia cidade naquele momento poderia
receber algum socorro, o outro lado do rio, separado por duzentos metros de
água e lixo, sem a ponte que rodou de manhãzinha, parecia outro mundo desolado,
destruído pelo poder insuperável da natureza impiedosa. A Utinga, o Jaraguá,
Indaiá, Porto Novo, tudo debaixo d'água.
Ficou ali o tempo que foi preciso, indo e voltando às Galhetas para
rever sua Maroca, acostumou com o cheiro da morte, diziam 500, mas talvez 2000
vidas se perderam nos sertões ao pé da serra e na beira do mar. Viu chegar
ajuda, ela ser roubada por comerciantes e políticos inescrupulosos e frios. Mas
também viu gente solidária fazendo jus à natureza do povo nativo.
O tempo passou, talvez o Dito ainda esteja vivo. Oxalá esteja para poder
ter visto o milagre que o povo de Caraguatatuba conseguiu realizar em 50 anos,
reerguendo a cidade que já havia morrido outras vezes, pela bexiga, pelo tifo e
pela natureza.
Mas, se ainda viver jamais deixará de ouvir em seu coração o grito das
pessoas naquele fatídico dia: "Olha a água! Caraguatatuba está
morrendo."
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