A pedidos, história de uma personagem que passou por Artur Nogueira, na ótica de Nei Caetano.
No ano de 1993 eu dividia a administração do Bar Floresta com os proprietários - o mítico Clóvis dos Santos e seu primo Edson Sia.
Uns dos bares mais frequentados da época, ponto de encontro de jogadores, políticos, filósofos e outros habitués, abríamos às 6 da manhã e fechávamos à meia-noite, de domingo a domingo. Cabia portanto a cada um seis horas de trabalho. Eu gostava de jogar xadrez, embora fosse um "capivara" maior do que sou hoje, mas a atividade não estava muito em alta na cidade, limitando-se a esporádicos encontros com os experts locais, a saber Maurício Rosalez, José Miranda e o próprio Clóvinho.
A 50 metros do nosso local de trabalho ficava o bar dos irmãos nossos amigos Osni e Djalma. Quando possível, geralmente antes do início do meu turno às 12 horas, ia até o Bar Tropical, onde sempre me encontrava para umas partidas com o amigo Carlão, um jogador aprendiz, mas com boa vontade para o embate no tabuleiro dos reis. Era bom parceiro, mas eu sempre o vencia.
Certo dia ficou nos observando um sujeito atarracado, com a magreza e rosto marcado característicos dos nordestinos castigados pela herança genética da eterna dificuldade daquela região inóspita. Era inverno mas o tempo estava quente, como hoje. Contudo o mirrado cearense vestia um paletó de lã, daqueles xadrezes com gola que imitava pele de animal, destoando da vestimenta leve dos demais frequentadores. Após assistir duas vitórias minhas sobre o Carlão, que se retirou para o trabalho na TEKA, perguntou-me se eu não jogaria uma partida com ele. Eu tinha pouco tempo até substituir o Clóvis no Floresta, mas do alto da minha arrogância enxadrística imaginei liquidá-lo em minutos e indiquei a cadeira à frente, cabendo-lhe as negras. A vantagem na abertura demonstrou de chofre que o pau-de-arara à minha frente não era um jogador qualquer. Rapidamente me venceu. Como o horário não permitia, escapei de uma tarde ainda mais humilhante.
Célere, corri até o nosso amigo, certamente na época o melhor jogador das redondezas a fim de comentar a "descoberta". Como de hábito o Clóvis desdenhou do "Paraíba", argumentando que seria difícil vencê-lo numa disputa. Mas notei que uma centelha de desafio se acendeu em suas íris. Dia seguinte a adrenalina me fez chegar mais cedo ao Bar do Osni, onde já se encontrava o nosso estranho jogador. Mais duas partidas, mais duas derrotas, e a fama já se espalhava entre os frequentadores aficcionados por xadrez do Floresta, Clóvis, Jaime e outros.
Conseguimos "roubá-lo" do Osni e o levamos ao nosso campo de batalha, onde ele e Clóvis passaram uma tarde inteira jogando, até o início da noite. Com isso o xadrez de Artur Nogueira, que andava às mínguas renasceu e os encontros passaram a ser cada vez mais frequentes, com a inclusão de visitantes não muito vistos por ali, como Martinho, Jairo, Luiz da Caixa e outros.
Nós pensávamos que éramos grandes jogadores, mas descobrimos com Raimundo um novo mundo do tabuleiro, com livros temáticos (ele os tinha), técnicas de abertura, finais e teorias de meio-jogo, além de pegadinhas inimagináveis.
Raimundo era uma pessoa de ótima índole, humilde mas nem tanto, inteligente, mas um pouco relapso, em todas as definições da palavra. Pouco tempo depois assumi a direção de outro bar, ali mesmo na Fernando Arens e as disputas se transferiram para lá. O nosso "bichinho", como eu o chamava, trabalhava como mecânico de máquinas de costura e tinha muito pouca experiência de vida, experiência essa que se resumia ao xadrez e ao jogo de damas, uma especialidade ainda maior sua, chegando a disputar o Campeonato Paulista e ser vice-campeão estadual dos Jogos do Sesi. Lembro-me que comprou um carro velho com suas economias, muitas vezes me utilizei dele para trabalhar porque o deixava comigo, que consumia boa parte do seu salário em oficinas de reparo. Certa vez, arrumou uma namorada aparentemente oportunista que levou-lhe outro quinhão dos rendimentos. Morava no Hotel Rosseti e algumas vezes em que estive por lá foi notável a desarrumação do lugar. A única coisa que soube sobre seu passado era que seus pais residiam na cidade paulista de Guará, nordeste do Estado e tradicional reduto de retirantes nordestinos, que vinham para o corte da cana.
Um dia, assim como chegou, desapareceu. Não deixou recado, endereço, vestígio de nenhum lugar onde poderíamos encontrá-lo. Com o advento da internet tentamos sem sucesso alguma informação do seu paradeiro. Cheguei a procurar em Guará o suposto Raimundo de Oliveira, o pai, mas com esse nome e origem a tarefa se revelou impossível.
Restaram essas boas lembranças e outras que tornariam o texto longo demais, mas principalmente foi responsável pela evolução de nosso xadrez, que mais tarde, em torneios e jogos da região, soubemos aproveitar. Obrigado, "bichinho", esteja você onde estiver.
Esse carro velho que quase caiu dentro do tanque rsrsrs
ResponderExcluirDemais o texto parabéns !! Grande Raimundo e se não me engano um chevette azul, me transportei para a infância agora e acredite estive presente ao redor na maioria destes acontecimentos.
ResponderExcluirRafael ....era um corcel azul... que às vêzes trazia seu pai com o cearense Raimundo.... um grande coração.....
ResponderExcluirCerta vez, no pesqueiro do Wada, Raimundo venceu o Clóvis numa disputa e o português irritado literalmente "vestiu" o tabuleiro (de madeira) na cabeça do vencedor. O cearense ficou para sempre com a cabeça chata.
ResponderExcluirÓtima narrativa e o que chama atenção é que basta o "surgimento" de um entusiasta do xadrez na roda de amigos para reacender o grupo. É uma outra grande qualidade desta nobre arte.
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