A Bela face de Caíssa

A bela face de Caissa O xadrez, a música, a poesia, o vinho e o amor provam não somente que Deus existe, mas que sua sabedoria e bondade são infinitas. Nesta noite sonhei que jogava xadrez, o que não é extraordinário. Normalmente sonho que estou levando uma surra, o que também é muito comum quando estou acordado. Desta vez meu adversário vestia uma túnica e um capuz negro, indumentária que não me permitia vislumbrar seu corpo, tampouco seu rosto. Pensei tratar-se da morte, partida que jogamos todo dia, mas estava enganado; tão logo anunciou xeque-mate, o encapuzado desmascarou-se e, ao arrancar suas vestes, pude ver uma linda mulher, que nem em meus delírios eróticos avistara tão perfeita. A partida estava equilibrada (assim eu pensava), quando ela fez uma jogada maravilhosa, digna da deusa do xadrez. Eu conduzia as peças brancas, (peões em a2, c2, f2, g2 e h2; torres em c5 e f1; dama em g5; e rei em g1), e ela, para combinar com suas roupas, as peças negras (peões em a7, b7, e6, g7, h7; cavalo em d4; rei em g8; torres em f8 e h3; e dama em c3). Ao mesmo tempo que ela jogou Dg3, saiu andando, nua, pela porta afora. Fiquei olhando o tabuleiro e vi que se eu tomo a bela dama com o peão da torre o cavalo dá-me xeque-mate; se tomo com meu peão do bispo o cavalo dá-me xeque, corro com o rei e morro pela outra torre; se como a bela dama com a minha (coisa perversa), o cavalo toma todas minhas peças. Acordei, maravilhado; acabara de receber a visita, em carne e osso, da própria deusa Caissa. Seus passos ainda ecoavam no corredor e eu continuava extasiado com a formosura de seu corpo. Ainda sob sua inspiração, resolvi escrever esta crônica que fala, principalmente, sobre a beleza no xadrez. A definição do que é beleza é uma coisa muito difícil. Sua compreensão intuitiva, pela via do sentimento, contudo, é bem mais fácil. Não me estenderei nesta vã tentativa, na qual filósofos tornaram suas noites insones. Ficarei com apenas duas explicações, ambas por sinal muito belas: “Beleza é o resplendor da forma na proporção da matéria”, de Santo Alberto. “A única beleza é a verdade que se revela”, do escultor Rodin. Talvez a autêntica beleza seja deixarmos a verdade permear completamente a nossa vida, os nossos atos, os nossos pensamentos. Voltando ao nobre jogo, entendo que a única finalidade do xadrez é a criação da beleza sobre o tabuleiro. Sei que sou um romântico, daqueles que ainda admiram Anderssen, Morphy ou Tal, mas comprovei também que minha opinião é compartilhada por muita gente, como Gilbert Milos, nosso admirado GM, de quem li isto em recente entrevista. Eduard Gufeld, em seu livro “Mi Mona Lisa em Ajedrez”, afirma que o xadrez deve ser entendido como uma luta permanente para criar beleza estética sobre o tabuleiro. Eu penso igualzinho. Beliavsky, em seu livro “Xadrez sem compromissos”, diz que as únicas obrigações do jogador de xadrez são lutar, negar-se a resultados combinados e buscar beleza. Muitos dos jogadores profissionais de agora, entretanto, não têm isto claro em suas mentes. Os altos valores pecuniários pagos em forma de prêmio por performance estão talvez levando o xadrez a ser um jogo extremamente competitivo em detrimento da beleza intrínseca do jogo. O grande Vassily Smyslov disse a mesma coisa, de outra maneira: “Se os aspectos da conquista a qualquer preço, em sacrifício da beleza, prevalecem, o xadrez tem uma natureza diabólica”. Keith Oxman, saxofonista renomado, afirma: “A beleza e a criatividade das obras primas do xadrez, a arte do jogo, me dão um senso de inspiração e deslumbramento, como na música, que somente a mente humana é capaz de produzir”. A beleza do xadrez provém de sua concepção lógica, estética e racional. Aaron Nimzovich assim definia: “A beleza das jogadas no xadrez não reside nas aparências mas nos pensamentos que estão por trás delas”. Mesmo quando jogamos mal, compreender a exatidão dos movimentos feitos por um grande mestre, que o leva a uma posição superior no tabuleiro, deixa-nos embevecidos. Não é necessário ser um mestre no xadrez para se emocionar com a beleza de seus movimentos - por exemplo – que Anderssen executa na “Imortal” ou na “Sempre-viva”, nem com os lances de Robert Fischer. O processo é análogo em qualquer esporte, pois não preciso ser um jogador de futebol para maravilhar-me com os gols do Ronaldinho Gaúcho. A plástica beleza inerente a estes dois fenômenos é a mesma, e alcança o limite da sapiência infinita. Num site gnóstico li que: “O summum da beleza é a mulher, a natureza, a aúsica, as flores, uma paisagem!”. Acrescento a poesia, o vinho e o xadrez e estamos conversados. Temos que entender a mulher citada (ou o homem, caso prefiram), como sinônimo de beleza estética, não do corpo físico, sujeito a avaliações e imperfeições. Por isto a clássica definição de Tolstoi: “Mulher bonita é aquela que fica bonita quando sorri”. Uma lindeza de frase. Assim, todo ser humano é bonito por conceito, ainda que uma mulher, um homem ou uma criança específica possam ser feios. A beleza passa por variações culturais, temporais e sentimentais, não é à-toa que o povo diz: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”. Longe de nós querermos padronizar ou classificar os critérios de beleza em geral, nossa tentativa limitar-se-á ao xadrez. Para isto está na hora de introduzirmos o mais famoso expert sobre beleza no xadrez - “François Le Lyonnais” - engenheiro, matemático, físico e fecundo escritor, nascido na França no começo do século XX e falecido em 1984, de quem, para quem desejar obter maiores informações, recomendo a crônica escrita com a maestria de sempre por Helder Câmara. Pois bem, ele é o autor do livro “Prêmios de Beleza no Xadrez”, sem dúvida o melhor trabalho já publicado sobre o tema em tela. Além de contar a origem dos prêmios de partida mais bela no xadrez, François estabelece em sua obra sete regras, ou critérios, para considerar a beleza de um jogo ou uma combinação, que são: 1ª regra: Correção (do primeiro gênero) – Uma combinação refutável pode representar um esforço notável de inventividade; porém em nenhum caso pode ser considerada como bela. Todos os maestros estão convencidos, porém nem todos os aficcionados. Para dizer a verdade, nem eu. Hoje se sabe que Réti refutou a “Imortal” de forma definitiva, e que a “Sempre-viva” ainda permanece controversa. Para mim, entretanto, são modelos de beleza e representam, sem dúvida alguma, o xadrez romântico e incendiário que se praticava na época. 2ª regra: Correção (do segundo gênero) – Por mais engenhosa que seja uma combinação, não pode ser considerada bela se existe uma combinação mais curta para forçar o ganho. De certa maneira, esta regra poderia ser descrita como a economicidade da combinação. Emanuel Lasker dizia jocosamente de um amigo que permitia que o adversário ressuscitasse na partida apenas para poder batê-lo uma segunda vez. 3ª regra: Dificuldade – Uma partida é tão mais bela quanto os adversários se criam um maior número de dificuldades e frustram as manobras que lhe são opostas. Quanto mais o perdedor comete erros grosseiros, tanto mais escurece o êxito do vencedor, sobretudo se as primeiras combinações hão sido possíveis devido às falhas de vulto. Reciprocamente, uma vitória é tanto mais bela quanto se obtém por meio de manobras que se desenvolvem em ambiente de grandes riscos. 4ª regra: Vivacidade – Uma partida é tão mais bela quanto contenha um reduzido número de jogadas “mornas”, e um maior número de golpes espetaculares. As jogadas são espetaculares quando são imprevisíveis, o que equivale a dizer, quando sacrificam material ou atividade. 5ª regra: Originalidade – Uma combinação que desde agora admiramos por sua beleza, não pode nunca constituir-se um título para obter um prêmio se se repete em outra partida. 6ª regra: Riqueza (aparente ou invisível) – Uma partida é tão mais bela quanto contém um maior número de combinações diferentes. Reconhece-se a diversidade pelo emprego de peças diferentes, ou o emprego das mesmas peças em funções distintas. Estas combinações diferentes podem apresentar-se sucessivamente ou alternadamente. No primeiro caso a riqueza é aparente, as combinações foram em realidade jogadas. No segundo caso, a riqueza é invisível, são os comentários que fazem ressurgir, baseando-se nas possibilidades das combinações, a riqueza latente, explicando por que as jogadas foram adotadas, e outras desprezadas pelos jogadores. 7ª regra: Unidade lógica – uma partida é tão mais bela quanto suas jogadas, manobras e combinações estão subordinadas a um único e preciso plano coordenador. E aqui terminam os critérios maravilhosamente descritos pelo gênio de “François Le Lyonnais”. Para terminar, e como eu não resisto à tentação de definir o que é beleza, seguem agora as duas últimas definições: “Xadrez é uma arte que expressa a beleza da lógica”, a mais séria definição que ouvi do nobre jogo, oriunda do grande mestre Mikhail Botvinnik. No lado oposto, cito a também genial e galhofeira definição de nossa roqueira rainha Rita Lee - “Beleza não se põe na mesa – só se a garçonete for bonitinha”. O xadrez, a música, a poesia, o vinho e o amor provam não somente que Deus existe – mas que sua sabedoria e bondade são infinitas. Nota: o estupendo lance apresentado nesta crônica aconteceu na partida entre S. Levitsky e F. Marshall, Breslau, 1912. Anotei-a a partir do livro “Mosaico Ajedrecistico”, de A. Karpov e E. Guik, Editorial Raduga. Clique e conheça o(a) autor(a) deste artigo: Ivan Carlos Regina

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