A cidade sem água

                                               A cidade sem água



Aos poucos a coisa vai se alastrando. Não, recrudescendo é a palavra. Sugada para trás com um desapetite invoraz. Primeiro nos bairros mais pobres, onde se paga o pato, como diz o velho ditado das terras de Algarve. A plebe não reclama, acostumada que está com as agruras do dia-a-dia, com as faltas constantes, seja pelo não pagamento, seja pela inconstância da rede hídrica. Mas os dias passam e outros, mais abastados, começam a sentir o efeito. A cidade sem água. Um dos símbolos da civilidade, da urbe, da construção da modernidade, a água encanada, acabou. As torneiras roncam como ébrios sonolentos, como gargantas longínquas que jamais alcançam o dizer. Pessoas reclamam, esbravejam em outro símbolo recém-nascido, as redes sociais da internet. Também nas ruas, nos botequins, na fila do banco. Culpam o governante, claro, que se abstém, medra-se e cala-se sem demonstrar a eloquência da última campanha. Não tem como se defender, não existe auto-crítica no comportamento de políticos. A oposição se esbalda, como se estivesse em oposto não teria problemas iguais, quiçá maiores. Outros culpam deus, outros pedem a seus deuses, primeira e última recorrência humana. O cientista procura verdades no passado, ou na prepotência dos cidadãos que naquele estado não se importaram com o futuro. Muitos vasculham o céu, sejam de deus ou da ciência, procurando a abençoada chuva que viria, mas que não vem. A meteorologia diz: "27 milímetros", mas onde? Nem dois. E vamos voltando no tempo, banhos de caneca e bacia, dos tempos em que a água era abundante, mas a energia elétrica não. Quem sabe não foi ela, esse outro símbolo da Era de Aquarius que causou que a água da vida se esvaísse? Perguntas vãs para os que passaram os dias abrindo e fechando suas torneiras, reclamando ou implorando, do palpável ou do sobrenatural, querendo "apenas" seu banho quente, sua morada limpinha, seu conforto refrescante. Quão pequenos somos, vencidos pela simples falta do elemento da vida, encanada nas paredes de nossas casas.

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